Tinha entre quatro e cinco anos pois lembro-me de que morava em Birigui, quando desenhei numa parede de casa (já que o único papel disponível era para embrulhar a manteiga produzida no laticínio contíguo). Não tenho muito claro o desenho propriamente mas tenho a memória exata da sensação que experimentei: aquilo era um bom desenho. Eu tinha conseguido desenhar algo como eu queria. Era um navio, mesmo que eu nuca tivesse visto um, mas apenas alguma representação simplificada nos álbuns infantis para colorir. Casco trapezoidal invertido, escotilhas redondas e chaminé – definitivamente aquilo era um triunfo! Fiquei tão empolgado com o feito que também não me lembro de ter tomado uma bronca da minha mãe pelo que, na visão estética limitada das mães: rabisco na parede é rabisco na parede e só. Pode ter começado aí um gosto pelo desenho que nunca mais me abandonou.
Picts. Nascem espontaneamente, quando a mente está concentrada em outras coisas, numa conversa, numa reunião, ouvindo uma música, lendo um artigo. E a mão está livre, conectada com outro nível de consciência. Podem vir de algum estímulo visual como uma pessoa à minha frente, uma imagem na parede ou brotam como imaginação pura, descompromissada e sem nenhum contexto. De lápis, caneta, pincel, sulfite, vegetal ou papel de pão. Podem ter cor ou podem não. Picts. Precisam amadurecer. Longas temporadas convivendo agrupados sem nenhum critério prévio. Até o dia em que são selecionados para serem postos à prova. Ampliados, ganham cores, texturas e individualidade. Picts são muitos. Picts. Filhos do mesmo processo. Cada um é cada um: único na sua técnica e colorido. A ideia de série (ou fase), no sentido tradicional, dificilmente se aplica a esse conjunto. No entanto tem em comum o personagem. Retratos e máscaras na sua apaixonante individualidade. Picts. Atonitos, simpáticos, frágeis, agressivos, velhos, novos, feios, estranhos, engraçados. Cheios de dúvidas, esperanças, cólera ou desencanto. Assim como que descobertos numa estação de metrô, habitantes de uma metrópole imaginária tão real quanto a imaginação pode ser.
O trabalho criativo levanta a questão, uma hora ou outra, do criador e da criatura. Claro que isso quer dizer, em última instância: autor e obra. Venho experimentando cada vez mais a sensação de que são coisas independentes embora não exista autor sem obra nem obra sem autor (mesmo que seja um anônimo perdido no tempo). Estou nesse momento me debatendo com uma das minhas pinturas que obedece o mesmo processo de construção e que no entanto, ao executá-la me deparo a cada vez com uma questão técnica ou formal, não importa, diferente e que interfere imensamente no resultado final do trabalho. Todo esforço que faço é para que os rabisquinhos aprisionados nos fólios sejam a manifestação de uma espontaneidade radical, nascida da alma desatenta e passada diretamente para o papel sem interferência de nenhuma intenção, ou melhor, pretensão. Aparentemente isso tem se dado sem maiores problemas pois ao longo de trinta anos de maturação, a escolha dos motivos a serem pintados renova e aprofunda esse critério. Em busca de uma fidelidade de execução tenho ao meu dispor todo o arsenal da tecnologia moderna (e a nem tanto, que me excita mais) que me permite repropor em grandes formatos esses, às vezes minúsculos, personagens/assuntos. Acontece aí um segundo processo criativo onde a criatura (ou obra) começa a se descolar do criador (no caso eu) e assumir suas próprias escolhas feitas no sedutor cardápio do acaso. Todo cuidado para reproduzir cada sutileza de uma curva distorcida pela ampliação, pode desaparecer para sempre sob uma pincelada mais estabanada ou ganhar um colorido que não estava no programa. Aquilo que poderia ser apenas mais uma página de um coloring book está desafiadoramente encarando você como um adolescente rebelde querendo fazer uma tatuagem. Sem pretender fazer teologia barata, isso remete à relação do homem com o Mistério, criador e criatura por excelência. Todo esforço para manter íntegra a sua criatura depende totalmente de uma manifestação da liberdade dela. Simples assim. Complicado assim: lutamos pela autonomia mas precisamos desesperadamente de alguém que nos dê um sentido, nos acolha como somos. Não é como concebi, não é como tinha imaginado, mas nasceu de mim. Mesmo com algum resquício de insatisfação, essa obra é objeto do meu amor. Posso dizer, eu, criador. Posso experimentar, eu, criatura.
No princípio não havia cores. Era um lápis preto sobre o papel do pão ou uma parede quando minha mãe se distraía. Com o passar do tempo e vendo que a compulsão pelo desenho não enfraquecia, fui autorizado a usar o verso das folhas do caderno de moldes de costura da minha mãe. Aos cinco anos ganhei uma lousa e o mundo virou negativo. Tudo era linhas brancas. Quando fui para o jardim da infância veio a lista de materiais que pedia dois, apenas dois giz de cêra: marrom e azul claro. Não entendia o porquê das cores cuja combinação me parecia tão bizarra: vermelho e azul, verde e marrom isso sim que é combinação! Isso marcou sobremaneira a minha percepção e o meu gosto pelas cores. Quando começaram as aulas o mistério se desfez e outro aspecto, também marcante, se reveleou. Cada criança trouxe duas cores diferentes (êta pobreza!) que foram colocadas sobre a mesinha de trabalho e enfim pudemos desfrutar da riqueza e do colorido de estarmos juntos. Não sei dizer se isso tudo foi intencional ou era apenas reflexo da penúria geral que vivíamos naqueles debutantes anos sessenta. Ainda hoje não uso essas duas cores juntas por uma certa reverência ao aprendizado que elas me trouxeram. Depois veio o estojo de 24 cores que o tio Rubens me deu. O tio Rubens era um tipo de Pasqualino Sette Bellezze na família. Rusticão mas de coração imenso e um senso de elegância muito peculiar: bigodinho fino, sapato trecê, terno de linho e cabelos impecavelmente domados pelo Brillcream. Sempre assoviando baixinho alguma canção de dor-de-cotovelo. Ele me deu de aniversário um mundo de cores novas. Salmão, carmim e vermelhão, ocre, roxo-terra. Cores com nome e sobrenome: Amarelo limão, amarelo canário, amarelo ouro. Verde primavera, verde oliva e verde pinho. Deslumbre total. Depois vieram as aquarelas que descobri na casa dos meus primos mais velhos que nem usavam mais: total desperdício. As pastilhas de aquarela vinham coladas numas cartelinhas em formato de palheta que sempre achei estranho por não conhecer ainda as palhetas verdadeiras. Mas meus primos fizeram uma coisa genial juntando várias pastilhas antigas numa única cartelinha. Isso fazia a minha delicia quando ia nas férias de julho para a casa da tia Irene onde essas cartelas mágicas ficavam consignadas. A tia Irene sabia fazer muitas coisas que me deliciavam. Fazia flores de pano, flores de papel crepom e maçã do amor. Dona Raquel, a apaixonante professora do quarto ano, me presenteou com gouache na certeza de que eu iria adorar. Quatro potinhos: branco, preto, azul celeste e vermelho. Infelizmente ela se esqueceu do pincel e eu não entendi bem como funcionava – achei meio gosmento. Só fui gostar mesmo quando fui trabalhar na Ugepal e conheci o gouache Talens, pincéis de marta e papéis mais lisos e resistentes. Um dia a Dona Walda, que ajudava na igreja e tinha um pequeno curso de artesanato na garagem de casa, resolveu que eu pintaria um cenário para o presépio. Não me lembro se ela tinha algum parente ou conhecido que era cenógrafo da TV Cultura e que passara instruções e materiais para a empreitada que ela providenciou e jogou na minha mão. Começou aí o "se-vira-aí-negão" que me é tão familiar até hoje. Um rolo de papel kraft, alvaiade e pó Xadrez. Pó Xadrez era um pigmento bem simplório que se usava para tingir a cal com que se pintavam as paredes antes do advento da tinta plástica. Preto, azul meio ultramar, amarelo ocre, vermelho de cimento, enfim cores meio indefinidas que, misturadas davam um resultado meio abafado, antigo. Os pincéis também eram os de pintar parede de modo que minha primeira experiência como Michelangelo não foi lá das mais promissoras. Lembrava da abside na igreja de Ribeirão Pires que o Fulvio Pennacchi pintara e desanimava a cada tentativa de produzir alguma beleza. Não foi um total desastre pois o cenário foi instalado. Não sei se por teimosia ou se as pessoas realmente gostaram. Minha mãe gostou. Mas a lambança no quarto da minha irmã, não sei se valeu a pena. Valeu a experiência e aguçou a consciência de que precisava de algum aprendizado pois, até então, estava embebido da auto-suficiência adolescente e mal informada: tinha sido convencido de que tinha um "dom" e isso bastava.
Acho que a maior sorte que tive na vida foi morar em Ribeirão Pires quando tinha cinco anos pois a Igreja Matriz de São José que meu avô freqüentava desde sempre. E meus tios, primos. E meus pais. Tinha sido projetada pelo Fulvio Penacchi. De simplicidade camponesa e um rigor estético inusuais nos subúrbios de São Paulo. Nunca me cansei e nem me cansarei de contemplar o imenso afresco que ele pintou no fundo do altar representando o nascimento de Jesus e a fuga para o Egito. Dois episódios em que o patrono da igreja – São José – tem um discreto protagonismo. Imenso pelo menos aos olhos de um fascinado garoto de cinco anos. Fico comovido ao tentar trazer para a memoria as suas cores: delicadíssimas como se não quisesse que nada perturbasse a paz que aqueles personagens desfrutavam e queriam dividir com quem os contemplava. Mesmo na cena da fuga, com Maria sentada no lombo do burrico e seu bebê no colo, não existe tensão: José simplesmente cumpre a sua missão e tudo parece estar em ordem. Tudo é tão concreto. No alto, sob o céu de pálido azul os anjos são arrebatadores: parece que as túnicas brancas, a faixa que seguram com as palavras "Gloria in excelsis Deo" não são de tecido mas de mármore, tão concretos são. Até as auréolas são sólidas. Pequenas e brancas que lembram mais hóstias do que os tradicionais halos de luz dourada. Aliás, não há ouro ali tudo é muito telúrico e essencial. Uma única palmeira do lado direito impávida, imóvel mas toda essa imobilidade não pesa pois há muito espaço e ar na composição que beira à pobreza dando a impressão de vazio. Mas esse vazio é pleno de Mistério.
Sinto-me como se tivesse despertado de um coma de vinte anos. Ou como uma espécie de Rip Van Winkle tupiniquim. Desde 1991, na sequência de minha primeira e única exposição individual, numa espécie de exílio voluntário daquilo que se convencionou chamar mundo da Arte, não tenho atuado como participante mas como um espectador distante. Apaixonado, é verdade, mas não envolvido. Mesmo nesse período sabático, tive a oportunidade de viajar bastante e tomar contato pessoalmente com muito da arte que me encantava por referência. Isso enriqueceu minha bagagem da história da arte ao mesmo tempo que me tornou um tanto negligente com a cena contemporânea. Pecado mortal. E como na contemporaneidade não existe redenção, estou inapelavelmente condenado ao anacronismo, a vagar indefinidamente em busca de um bonde perdido. Sem madeleine, arrependido. Isso tudo porque saí para ganhar o brioche-de-cada-dia. Parto desse princípio e faço de conta que não entendo nada e não demora muito para descobrir que não estou fingindo: não entendo nada mesmo. E bem lá no fundo jaz uma forte desconfiança de que muito pouca gente sabe. Há opiniões, muitas opiniões, divergentes e de certo modo inquestionáveis sobre tudo. Pior: inconfessáveis. A única aparente unanimidade é que no mercado de arte, quem dá as cartas são os colecionadores. Ah, vá! Então a grande jogada é encontrar um mecenas ou, mais contemporaneamente, um patrocinador. E a democratização da arte é uma figura de retórica. Arte é uma atividade altamente elitista que dispensa a participação ou aprovação ou mesmo compreensão do público. Acabo de ver um vídeo do Moma com uma curadora explicando como se faz, cem anos depois, para entender o Marcel Duchamp! Exclusividade é o grande valor e, por definição, é a qualidade de por à parte, excluir. Arte é artigo de luxo e se assim não for, é mera decoração. Arte é o único lugar onde você pode colocar uma montanha de dinheiro sem correr o risco de parecer vulgar. Ou perdulário. Como disse Jeff Koons, um dos mais bem sucedidos artistas do mundo contemporâneo: “arte não é pintar um quadro, é vender um". Então...
O desenho, outrora útil tanto como registro da realidade quanto para expressar com clareza uma ideia, foi, por conta das tecnologias que se sucederam para tal, gradativamente perdendo suas funções até se tornar deliciosamente desnecessário. E tristemente desprezado: parece que desenhar mal passou a ser sinal de profundidade. E eu, o que faço com esta competência? E com este gosto? Sendo que a percepção de mim mesmo como artista esteve, desde sempre, diretamente ligada a essa facilidade, sinto o peso dessa inadequação, esse anacronismo que me conecta muito mais aos homens das cavernas do que às cerebrais ondas contemporâneas. Nos anos 70 já se decretava morte da pintura e eu pensava "Justo na minha vez?" Mesmo admitindo que hoje a arte possa ser apenas uma ideia e dispensar a materialidade, no mais profundo de mim mesmo isso não faz eco. Não me interessa como expressão. Nem a arte ideológica que assombrou minha formação acadêmica e nesses tempos de esquisitices políticas parece reacender os debates. A originalidade é o ser. E o fazer se torna original pela fidelidade a este ser. Se não for assim é afetação, é modismo. A busca dessa sinceridade no trabalho é que resultou no processo que venho desenvolvendo há décadas e que vem se confirmando, a meu ver, como método criativo para evitar as interferências de um discurso postiço ou o risco de uma poética pré-fabricada.
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